sábado, 4 de setembro de 2010

Taháinn - O Sacrificio (parte 3)

Ruslan foi o primeiro a agir. Podia não ser um guerreiro, no entanto era rápido no pensamento e sabia que lutava contra um oponente formidável. Sua mente astuta – treinada com anos de pratica na politicagem de Riddarie –  avaliou rapidamente sua condição e logo soube que precisava fazer o primeiro movimento, explorar a vulnerabilidade do irmão que fora criada pelo Fäinnur. Decidiu investir em carga contra seu adversário para então recuar rapidamente, tentaria derrubar o irmão e torcia para que seu próprio corpo destreinado e exausto agüentasse as intempéries de um combate. Respirou fundo e então correu em direção ao inimigo, com a espada levantada acima da cabeça e soltando o mais alto brado que conseguiu produzir com seu pulmão exaurido, procurando encontrar coragem e forças. Sem que notasse, era ajudado pela estranha magia das rochas verdes, que pareciam apenas querer a discórdia.

O nobre galgou rapidamente grande parte da distancia que o separava de seu irmão, seu berro continuo era aumentado em muitas vezes pelo eco da caverna e, junto com a raiva que sentia, o impulsionava adiante. Por duas vezes tropeçou sem cair, pois aumentou ligeiramente o ritmo de suas passadas, fazendo com que seguisse em frente numa carreira desregular. Esperava pegar o irmão de surpresa, devido ao seu ímpeto digno de um combatente ensandecido, e finalizar aquilo com apenas um golpe. Sua expectativa não se cumpriu, pois, mesmo ferido e cansado como se mostrava, Taháinn ainda era um dos maiores cavaleiros de Riddarie, de modo que encontrou facilmente uma resposta para o movimento do nobre.

Mesmo com a necessidade de usar a espada como apoio para se locomover Taháinn não precisava de tal ajuda para manter-se parado, de modo que pode utilizar Köulard para o que ela realmente fora feita. Por mais que o estorvo em forma de bebê que estava aninhado em seu braço esquerdo impedisse o uso desse membro, não teria dificuldades para empunhar sua espada bastarda, tal tipo de arma, típica da cavalaria, podia ser usada com uma ou ambas as mãos. Não sentiu dificuldades em usar a Köulard, afinal, a despeito do seu ferimento exibindo uma certa, embora limitada, maestria.

Taháinn firmou-se no chão, ignorando a dor que a perna sofria, e postou-se em uma base sólida, preparada para agüentar empurrões. Então torceu o pulso para cima e puxou-o para perto do peito, apoiando rudimentarmente o cabo de sua espada no tórax da armadura, dessa forma direcionando a ponta da lâmina para o homem que corria. Caso estivesse em plena forma não se valeria de tais peripécias, no entanto na posição horizontal qualquer espada cobra o seu peso – ainda mais se tratando de uma bastarda como Köulard, maior em comprimento que o normal – por isso temeu que não agüentaria segurar a arma por tempo o suficiente caso simplesmente estendesse o braço, devido ao cansaço físico e à perda de sangue que há muito começara a afetar suas forças. Mesmo com sua invencionice ele não conseguiria manter a ferramenta de morte naquela posição por mais que um minuto, mas era tempo suficiente para que Ruslan fosse forçado a desistir de sua carga, embora se aproximando bastante, coisa que era parte da estratégia do guerreiro já que não precisaria gastar suas escassas energias se deslocando para um contragolpe.

Ó, Mãe Escuridão, fortalece-me.

Um som arrastado se fez ouvir na caverna quando Ruslan apertou seus calcanhares contra o solo pedregoso para que conseguisse evitar ser atravessado como carne em um espeto. Seu brado foi silenciado de seus lábios, mas ainda era ouvido, carregado pelo eco da gruta. Conseguiu parar a vinte centímetros da ponta da espada de seu irmão e em uma rápida avaliação constatou que este não poderia sustentar sua arma na horizontal por muito mais tempo, por isso Ruslan aguardou até que o adversário baixasse Köulard. Ele respirou fundo e manteve o peito estufado, crispou os lábios em uma fina linha, canalizando sua raiva e forças para o golpe que viria. O guerreiro à sua frente baixou a espada, roçando sua ponta no chão e deixando o braço reto ao lado do corpo, dessa forma abrindo passagem para um ataque. O nobre impeliu seu corpo para frente com um pequeno salto e sua espada perfez um arco da esquerda para a direita, visando à parte desprotegida do pescoço que ficava no lado destro de seu inimigo.

Como guerreiro experiente, Taháinn não teve dificuldades em bloquear o corte que tentava lhe decapitar. O cavaleiro sabia que seu irmão não ousaria atacar pela esquerda já que era ali que o bebê estava aninhado em seu braço e que provavelmente tentaria um lugar óbvio, como o pescoço. Ruslan – devido à falta de técnica – não percebeu que sua tentativa de terminar a luta poderia ser frustrada facilmente caso o inimigo perfizesse um simples girar de pulso e um puxão para cima deixando a espada em pé, desta maneira jogando sua arma para o lado e abrindo sua guarda. Estratégia a qual Taháinn se valeu.

O choque das duas espadas produziu um canglor tão familiar ao portador de Köulard – homem mais do que acostumado em agüentar o tinir de sua arma ao encontrar uma peça inimiga – que Taháinn se exaltou, inspirando-se em antigas escaramuças pelo calor do combate, e então, como de costume em um confronto corpo-a-corpo, tentou chutar o adversário para desequilibrá-lo e assim facilitar ainda mais sua resposta. Porém, devido ao ferimento em sua perna, não conseguiu move-la, parando assim que sentiu o músculo da coxa reclamar. Tudo o que conseguiu foi sentir dor, fazer uma careta e perder uma boa oportunidade de terminar aquele embate.

Assim que Ruslan perdeu a sua chance segurou com mais força o cabo da espada, pois quase a perdera quando teve seu golpe aparado. Estava irritado, pois tinha consciência do perigo que corria e do desnível de habilidade entre ele e o irmão, sem contar a diferença entre o tamanho das espadas: coisa que até mesmo ele sabia ser um enorme diferencial em uma batalha. Sua única chance repousava no fato de Taháinn não poder se locomover e possuir um profundo ferimento, portanto, Ruslan sabia, deveria desferir uma serie de ataques, mesmo que ineficazes, e minar as energias do inimigo. Pensou por alguns instantes sobre como deveria atacar, mas na realidade não tinha muita escolha, já que, seu filho era mantido refém no membro esquerdo do inimigo. Então, escorregou a espada para o lado, passando por debaixo do braço que segurava a ameaçadora Köulard e tentou atingir a parte desprotegida do flanco do irmão.

Novamente o golpe foi aparado, bastando para Taháinn torcer a mão para baixo. O barulho de metal se chocando se fez ouvir novamente, mas dessa vez Ruslan não deu tempo para o irmão sequer pensar em uma contra-medida, sabendo que sua vantagem residia na velocidade desferiu uma serie de golpes rápidos, nenhum destinado realmente a tirar sangue do inimigo apenas exauri-lo. Porém, o cavaleiro caído não era iniciante. Além de não ter cedido nenhum centímetro de espaço e ter bloqueado com maestria todos os ataques-finta do irmão, achou uma pequena brecha analisando a quantidade de golpes desferidos antes de uma pequena pausa, e, num estante em que o inimigo chegou mais perto, acertou seu nariz com as costas da manopla.

Ó, Mãe Escuridão, alegra-me.

Ruslan deu alguns passos para trás, desnorteado. Sentia uma quentura descer até o queixo. Nunca havia recebido nem mesmo uma tapa no rosto e agora sua cabeça girava. Cambaleou para os lados como um bêbado andando para trás, devido à tontura que lhe acometera, e então, estando a uma distancia segura de Taháinn, levou as mãos até o nariz, verificando se o mesmo havia quebrado. Não achou que houvesse, de fato, fraturado o osso nasal, tivera sorte por seu inimigo não estar no melhor estado físico e não ter podido mover-se para frente, do contrario estaria se contorcendo de dor, com o rosto desfigurado pelo golpe aplicado com o metal da armadura e sua tontura só terminaria quando o golpe de misericórdia lhe enviasse para os braços de Sjelkard.

Mesmo sem ter tido grandes ferimentos em sua face, o nariz do nobre recebera uma forte pancada e agora sangue escorria até o seu pescoço. Ele ficou irado, jamais alguém havia lhe batido e não se lembrava da ultima vez em que sangrara. Balançou a cabeça para afastar a tontura e surpreendentemente este ato pareceu funcionar. Seus lábios ensangüentados se contorceram para formar um padrão que representava fúria e novamente só tinha olhos para sua vingança contra o irmão. Este, mesmo cansado e meio-morto, exibia um risinho de escárnio. Ruslan, desta vez atacou por puro impulso – sem contar com a ajuda emocional da mágica das pedras esverdeadas – jogou o braço da espada para trás e, com o grito mais forte e medonho que dera em toda a sua vida, lançou-se para frente, certo de que dessa vez conseguiria atingir um ponto que ficava nas axilas do inimigo, aberto pela posição do braço do cavaleiro e desprotegido por sua resistente armadura de placas. Caso Ruslan ali acertasse, além de causar uma intensa hemorragia, impossibilitaria Taháinn de utilizar sua tão perigosa espada.

A tentativa nem mesmo assustou o cavaleiro, na verdade ele contava com ela. Assim que seu irmão tentou atingi-lo em um ponto vulnerável – que fora devidamente deixado à mostra para incitar tal ato –, terminou de levantar o braço da espada para cima, deixando-o completamente na vertical e segurando Köulard para trás, então girou a cintura e o tórax para o lado direito. Tal movimento acabou fazendo com que o golpe de Ruslan raspasse inofensivamente num canto do peitoral da armadura e deslizasse pelo lado de Taháinn, sem causar nenhum dano. O cavaleiro, vendo que sua armadilha havia funcionado, rapidamente baixou o braço direito e o inclinou um pouco para trás, com isso conseguindo prender o pulso do irmão entre o bíceps e a lateral da armadura.

A espada do cavaleiro, formando um ângulo agudo em relação ao membro de seu portador, tocava, com sua ponta, a garganta de Ruslan. O nobre tentou desesperadamente desvencilhar-se do aperto de Taháinn, mas nada conseguiu. Parou de se mexer quando o irmão pressionou a afiada extremidade da bastarda, fazendo algumas gotas de sangue escorrerem do pescoço do nobre e juntarem-se com os filetes, ainda molhados, que escorriam preguiçosamente do nariz ferido.

O nobre, desesperado, acreditava infantilmente que ainda tinha chances, pois Taháinn parecia ponderar sobre qual destino decidiria dar-lhe. No entanto, quando o adepto da política olhou, com cautela, para os olhos do guerreiro percebeu que ali não havia pena, apenas uma clara satisfação em manter a vida de uma pessoa refém da ponta de sua espada. Naquele olhar Ruslan percebeu a enorme quantidade de almas que já haviam perecido sob aqueles mesmos olhos calmos e inexpressivos, olhos de um assassino. Subitamente o lugar pareceu ficar mais frio, mas mesmo assim o suor do nobre descia à cântaros, misturando e diluindo o sangue que havia em seu rosto e pescoço, fazendo com que seus ferimentos ardessem. A coragem que a magia das rochas verdes e malignas lhe proporcionava estava indo embora, elas já estavam satisfeitas e não mais precisavam se alimentar das emoções do lugar. Todo o pavor que deveria ter sentido desde o início, quando os dois se encontraram, voltaram aos borbotões.

Ó, Mãe Escuridão, atende-me.

Ruslan começou a tremer de medo sob a ponta da espada. Ficou claro para ele que desde o inicio daquele combate não tinha chances de derrotar o irmão. Em pânico, sabendo que a morte não tardaria, largou sua própria arma e começou a se debater, tentando libertar-se. Não conseguiu mover seu pulso nem um milímetro e a cada vez que se esticava para trás e voltava para frente um novo ferimento superficial, se formava em seu pescoço, começando a encher de sangue a gola de sua cara camisa. Em um determinado momento, em que o ele fez mais força do que nas outras tentativas, Taháinn afrouxou o aperto.

O nobre foi projetado para trás devido a inércia produzida pelo seus esforços. Sem conseguir reagir de modo apropriado, acabou por tropeçar em seus próprios pés para então cair dolorosamente com as costas no chão. Ele podia ter fugido, podia ter se virado engatinhado e então corrido até onde suas pernas o levassem. No entanto não o fez. Estava aterrorizado demais para esboçar qualquer reação e isso estava estampado em seu rosto, fazendo com que se nobre aparência se desfizesse e revelasse um tolo. Não conseguindo fazer nada e nem mesmo tendo a consciência de que algo podia ser feito, limitou-se a, atônito, observar Taháinn ir mancando até onde estava.

– Foi na viagem de volta que eles começaram... Os sonhos. – Disse o cavaleiro enquanto se arrastava em direção ao irmão. – Eu não entendia no inicio, e nem queria entender. Achava que havia sido amaldiçoado ou algo parecido. Via imagens estranhas. Escuridão, fogo, morte. Me via matando pessoas e mesmo nos sonhos eu sabia que eram do meu próprio povo.

A cada pequeno passo que ele dava a extremidade de sua espada tocava o solo pedregoso, fazendo um barulho metálico que se propagava pelas paredes da gruta... A cada passo que ele dava... Ruslan tremia.

Ó, Mãe Escuridão, observa-me.

– Eu repudiava aqueles sonhos. Achava-os maus e temia que se realizassem. Com o tempo, em meio às imagens turbulentas, uma mulher aparecia, a mais bela mulher que eu vi, e eu soube que ela era Mirkhoên. Ela me acalentava, dizia que para eu nada temer, dizia que iria me proteger e que em seu nome eu faria coisas grandiosas. A partir daquela época meu amor por Ilidryn começou a diminuir. Os sonhos já não eram castigos, passei a tolerá-los... e logo a esperar por suas deliciosas vindas.

Estacionou onde Ruslan estava e, apontando sua espada para o peito do irmão, continuou a falar.

– Cheguei à Boltháir já com ódio no coração. Os sonhos me ajudaram a ver como eu fora destratado e ofendido. Mostraram-me que o povo a quem eu servia era interesseiro, mesquinho e nada queriam de mim além do meu sacrifício por suas vidas, para então me esquecer e colocar outra pessoa em meu lugar. – fez uma pausa – Talvez eu tenha ficado louco... Eu fiquei louco. Mas a insanidade nada mais é do que outra forma de enxergar. Uma forma em que os sãos não conseguem compreender. Mas mesmo ali eu não trairia Riddarie, não estava satisfeito com minha condição, estava irritado e me sentia usado, descartável, um peão num joguete político, mas aquele ainda era meu lar e, mesmo não mais vendo Ilidryn como via outrora, ela seria minha esposa e minha posse.

Ó, Mãe Escuridão, acalenta-me.

Apertou a espada contra o peito do irmão e começou a fazer traços, que logo eram preenchidos com sangue. Ruslan nada pode fazer além de, paralisado pelo medo, encarar debilmente o irmão e ouvir – sem realmente entender – a história que ele contava.

– Então eu estava de frente para o rei. Percebendo que minha missão fora inútil e que apenas serviu para que eu estivesse longe do reino enquanto ele tomava certas medidas. Ele era fraco. Tinha medo de que a ordem dos cavaleiros resolvesse o depor e dissolveu o grupo. Sabia que seu filho seria contra e por isso me mandou junto. Queria apenas garantir que continuaria a reinar até o fim de seus dias e para isso vendeu Ilidryn, comprando a paz. – sorriu achando graça nas lembranças, como alguém que relembra uma feliz infância há muito esquecida – Então eu percebi que já tinha visto aquela cena, que já tinha sentido aquele ódio, que aquilo era para meu amadurecimento perante minha senhora. Em meus sonhos eu havia vindo sendo preparado para aquele momento, era o ultimo passo para canalizar minha raiva e viver através dela, como eu estava destinado. – Falava com uma crença lunática e fervorosa, acreditando que cada palavra sua não representava menos que a verdade absoluta. – E então, fiz o que os sonhos me diziam. – sorriu divertidamente – Pena que não consegui matar o rei.

Ruslan para ele com terror, certo de que o irmão enlouquecera e traria ainda mais dano para Riddarie. Reunindo os fragmentos do que restava de sua coragem, proferiu uma pergunta.

- E agora?

- E agora? – Repetiu Taháinn malignamente – Agora você morre, pena que o garoto não esteja acordado para ver.

Ó, Mãe Escuridão, satisfaz-me.

Com um movimento rápido o cavaleiro enterrou a espada na garganta do irmão, atravessando-a e atingindo o solo da caverna, o nobre nada fez além de vestir uma mascara de surpresa. Primeiro Ruslan não entendeu o que havia acontecido, mas então, ao tentar falar gargarejos ininteligíveis substituiriam as palavras que queria proferir. Borbulhas de sangue escorreram de sua boca e de seu ferimento, manchando sua roupa e escorrendo até o chão, lugar onde uma poça rubra era formada. Ainda sorrindo Taháinn girou a lamina da espada, fazendo com que um jato vermelho atingisse sua armadura e mandando a alma de seu irmão para onde quer que ela pertencesse. Retirou Köulard do corpo morto – que encarava com olhos semicerrados o seu assassino – e com um movimento rápido retirou o excesso do sangue que residia na lâmina ainda coberta com crostas antigas, advindas da vida das pessoas que matara em sua fuga.

Taháinn se virou, perdendo ao interesse em seu irmão, agora morto e fora de qualquer história que as pessoas, anos depois, viriam a contar sobre todo o ocorrido. O cavaleiro novamente olhava para aquela porta no fim da caverna, coisa que permeava seus desejos desde que tentara assassinar o rei. Voltou a rastejar em direção ao fim da gruta, sabendo que agora tudo se encaminharia para um final, atrais dele o corpo sem vida começava a dissolver e borbulhar, de uma maneira misteriosa, sendo absorvido pelas pedras. Rochas essas que de tão misteriosas jamais ganhariam uma explicação nos anais da história.

– E agora, meu prêmio. – Disse Taháinn para si mesmo enquanto se esforçava para alcançar seu objetivo.

Ó, Mãe Escuridão, aguarda-me

...

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