sábado, 21 de agosto de 2010

Taháinn - O Sacrificio (parte 2)

Taháinn virou-se, primeiro por susto, movido pelo instinto; aquele era o ultimo lugar o qual esperava ser descoberto e, por isso, fora surpreendido pelo brado. Porém, em meio ao movimento giratório que fez para volver-se, acabou por identificar a voz do homem que o chamava. Uma voz familiar, que ouvira por toda a sua vida e que, há menos de uma semana, passara a odiar. Quando terminou sua meia volta – um esboço daquela que havia aprendido em seus tempos de recruta, já que sua perna defasada o impossibilitava de movimentos amplos – não mais estava com a expressão atônita dos surpreendidos em sua face. Exibia um meio sorriso, um misto de triunfo e perversidade. Era como se olhasse para um inseto particularmente nojento a ser esmagado e sentisse um prazer cruel no exercício deste poder; foi apenas uma das coisas a fazer com o recém chegado que passaram por sua mente insana. Refreou o imensurável instinto assassino que começava a se apoderar de seu corpo e causar-lhe tremeliques, limitando-se a fitar os olhos daquele que havia acabado de chegar com uma calma perturbadora.

O homem que havia interrompido a marcha do cavaleiro não usava uma peça de armadura sequer, sua única proteção era uma blusa folgada e cara que estava na moda entre a nobreza da região, usada principalmente em ocasiões informais. O linho era de qualidade, tingido de bege, decorado com tinturas douradas na gola e na manga e alguns padrões em vermelho decoravam a camisa. No entanto, contrariando o alto custo que a vestimenta poderia ter, mais aparentava o vestir de um camponês, devido à quantidade de manchas de suor que a colavam no corpo magro de seu dono e os aglomerados de sujeira. A calça que completava o figurino não tinha nada de marcante, era feita de couro e tipicamente usada para cavalgadas entre aqueles de baixa renda. Certamente o recém chegado havia vindo com pressa, sem ter tempo sequer de se preparar.

Ofegava, cansado,  o nobre não era dado a longas caminhadas e principalmente à perseguições. Um filete de suor escorria pela sua têmpora e seu cabelo - curto e, originalmente espetado, apontando para cima na parte da frente -, estava revoltado e caído, devido às gotas que pesavam suas mechas. A mão do perseguidor segurava uma espada presa em seu cinto, um instrumento simples, completamente diferente da obra-prima possuída por seu adversário, podendo ter sido facilmente adquirida em meio a soldados rasos e lanceiros. Ele Apertava o artefato com força, como se ele fosse um talismã, a única coisa a lhe proteger dos perigos que poderiam habitar aquele lugar maligno.

Mantinha-se a uma distancia segura do outro, sabia que o inimigo estava ferido na perna e não podia correr e tampouco lutar usando toda sua capacidade, pretendia aproveitar-se disso e enfrentar Taháinn. No entanto, estava completamente esbaforido, não conseguindo manter-se em uma posição sequer próxima de uma base apropriada para um duelo de espadas. Suas costas arqueavam para frente, como que impelidas por um peso invisível, suas pernas não lhe ofereciam muita estabilidade e a única coisa que o impedia de olhar para baixo, devido ao cansaço, era o ódio que sentia pelo homem que carregava o bebê... Seu bebê, sua criança. Mesmo com as feições distorcidas pela raiva atroz que parecia percorrer cada centímetro de seu corpo, elas denunciavam seu parentesco com aquele que matara o Fäinnur de Riddarie. Afinal, o recém chegado era irmão do seqüestrador, do cavaleiro caído... Do traidor.

Taháinn olhava para ele com o divertimento de um sádico.


Ó, Mãe Escuridão, contempla-me.


- Ruslan... – Respondeu vagarosamente o cavaleiro caído - parodiando o modo agressivo o qual fora chamado. Fez um trejeito com o braço que segurava a espada, como que perfazendo um gesto cortês típico daquela região. O sorriso maligno aumentou em seu rosto – O que o traz aqui, meu irmão?

Ruslan cerrou os dentes com toda a força que conseguiu reunir, mas não percebeu o filete de sangue que escorreu pelo seu lábio – advindo de um ferimento produzido pela pressão sobre as gengivas -, apertou o cabo de sua espada com mais força, causando pequenas lacerações em sua palma, devido à força imprimida contra o couro da empunhadura. Não se importou com as escoriações. Tamanha era a fúria que sentia pelo homem à sua frente que não tinha olhos para mais nada, por um momento até mesmo esqueceu-se da presença de seu filho, que jazia no colo de seu irmão. O pai era orgulhoso e, em seu âmago, queria apenas uma coisa: Matar Taháinn.

- O que me traz aqui...? – perguntou ofegando, sem que fosse ouvido pelo irmão, pois quase não produziu som – O que me traz aqui?! – dessa vez gritou com um tom acusador.

- Não foi isso o que perguntei, irmão? – foi a resposta de Taháinn, que ainda se mostrava calmo e superior, traindo o que realmente passava dentro de si.

Um sorriso insano se formou nos lábios de Ruslan. Não por ver alguma graça na situação, mas sim porque sua mente, exausta e em frangalhos, não conseguira aceitar que seu irmão se mostrasse tão alheio ao que havia feito. Cambaleou. Suas pernas se mostravam pesadas devido ao cansaço físico e mental, seus joelhos dobravam, forçando-o a adotar uma posição cada vez mais curvada. Deu uma risadinha, que acabou se intensificando até chegar a uma gargalhada maníaca. Sabia o que estava acontecendo. Era o verde... Aquele verde... Tinha algo naquelas pedras... Naquela cor misteriosa... Estava aumentando suas emoções, tornando-as mais fortes, esmagadoras, fazendo-os tomar conta de seu ser. Aquela cor se nutria de sua miséria. Não tinha a menor idéia de como sabia tudo isso, apenas sabia... Sentia.

Em meio à sua crise histérica acabou por novamente cruzar os olhos com seu irmão. Este nada fazia, apenas o olhava com aquele riso superior, de quem sabe das coisas, de quem tem a certeza de que vai ganhar. Será que ele não era afetado por aquelas pedras? Pelo verde? Ruslan não sabia, mas um desespero começou a se apoderar de seu corpo, fazendo seus olhos marejarem e um nó se formar em sua garganta. Essa sensação foi logo substituída por uma raiva perigosa, que fazia com que a adrenalina em seu corpo aumentasse para níveis imensuráveis, e lagrimas escorressem livres pelo seu rosto, agora vermelho e novamente contorcido de ódio.
– Como tem coragem de fingir que esta tudo bem depois do que fez?! – rosnou – você traiu o seu rei, matou nosso príncipe... Seqüestrou meu filho! – ofegou por um instante, antes de continuar – Como pode estar tão... Calmo? – desta vez, pareceu suplicar – Por que fez isso tudo?

- Por quê?

Primeiro Taháinn riu, achando graça da pergunta e pretendia mais uma vez irritar e fazer pouco caso do irmão, uma pequena diversão antes de matá-lo, no entanto a lembrança de seus motivos aflorou o ódio que sentia e estava reprimindo. Diferente de seu irmão, não era afetado pelo efeito que a magia das pedras causavam nas emoções e nem sabia que tal coisa acontecia. Apenas deixava-se levar por uma raiva primitiva e natural, que tomava cada centímetro da sua mente e turvava-lhe a visão. Cenas vieram à sua cabeça. Toda a sua viagem fora relembrada. Aquela viagem. A fatídica missão a qual fora enviado com sua companhia de cavaleiro... Para na volta em vez de glorias, receber apenas traição e infortúnios.

Sentiu seu corpo ferver e o sangue pulsar nas mãos e na região a qual fora ferido, assim como seu irmão, aumentou a pressão que seus dedos faziam sobre o cabo de sua espada, mas, diferente de Ruslan, sua ira era representada – quando estava frente a frente com seu desafeto - por escarninho e sarcasmos e não por gritos e choros. Era certo que tal modo de demonstrar sua fúria não diminuía a vontade assassina que sentia, porém, gostava de uma pequena tortura psicológica antes de matar os seus alvos. Mesmo em sua época de glória, o cavaleiro já apresentava amostras de crueldade.


Ó, Mãe Escuridão, alimenta-me.


Taháinn não sabia, porém, se agüentaria por muito mais tempo manter as estribeiras.

- Por quê? – perguntou outra vez, com a voz abafada, porque havia travado sua mandíbula enquanto trincava os dentes.

- Isso mesmo, por quê? – gritou seu irmão, ainda choramingando.

- Eu fui mandado para Kiell em uma missão de espionagem, disfarçada de uma conferencia. – aumentou a voz a cada palavra – Eu, um dos cavaleiros de mais alta honraria, um dos três generais de Riddarie portador de Köulard, uma das espadas de antiga linhagem servir de mero garoto de recados.

- E isso é motivo para tamanha traição?! Obedecer a ordens desgostosas de seu rei?! – respirou para continuar com suas acusações – É por isso que seqüestrou meu filho e feriu o orgulho da minha casa?!

- Você é um arrogante orgulhoso que mal liga para essa criança, vire sua língua de serpente para outro lado. E não, não foi por isso que fiz tudo o que fiz... Não traí antes de ser... Traído...

Mostrando um resquício de humanidade, o cavaleiro caído olhou para baixo, com pesar. As lembranças do que havia passado... Do que havia perdido... Voltavam à sua mente em uma velocidade alucinante, como que querendo partir sua força, tirar-lhe o resto de sanidade e arrancar de sua alma o resto do homem honrado e afável que fora. Eram imagens de Ilidryn que atacavam a sua cabeça, todas elas, sem exceção... O rosto delicado da garota-mulher não lhe dava trégua, lembrando-lhe dos bons e felizes momentos o qual passara com a jovem, de sua risada jovial e alegre... Mas nunca a veria novamente... E isso destruía o seu ser.
O cavaleiro olhou novamente para seu irmão. Mas já não tinha mais o olhar petulante e sarcástico, não exibia a superioridade que insistia em demonstrar. Seus olhos carregavam apenas uma raiva quase que animal e um instinto assassino latente. Já ficara deste modo outras vezes, mas nunca se rebaixara ao ponto de outras pessoas o verem em tal estado deplorável. Era orgulhoso, acima de tudo, assim como o seu irmão. Talvez esse fosse um mal de família o qual Taháinn e Ruslan carregam desde muito jovens e, certamente, era o motivo pelo qual naquele dia Riddarie estava em grande pesar.

Taháinn queria logo chegar até a porta, não via a hora para alcançar o objetivo pernicioso e vil o qual viera perseguindo desde que saíra de Boltháir - A chamada Cidade-celeiro, capital de do seu reino -. No entanto, tinha que gritar, tinha que acusar, tinha que... Matar... Ou então, de nada valeria toda a sua empreitada, pois estaria com seu espírito em frangalhos. Mais tarde se arrependeria pelo fato de que, entre todas as pessoas possíveis, justo o seu irmão o havia visto perder o autocontrole.

- Eu cumpri meu dever e fui reportar ao rei. Apenas para então descobrir que minha futura esposa havia sido dada em casamento para Khadec o líder dos bárbaros do Vale das Pedras! – Cuspiu no chão ao falar aqueles nomes e continuou com seu brado. – Todos sabem que destino aguarda aquela que se casa com aquele homem – rosnou entre os dentes.

- Sei, sei. – respondeu o irmão demonstrando impaciência – As esposas de Khadec não costumam viver mais do que três meses. E ninguém sabe exatamente o que é feito delas... Mas o que eu haver com este seu infortúnio?

- Acha que não sei como você enriqueceu tanto na minha ausência? – manteve a ferocidade estampada no olhar – Acha que foi difícil descobrir que voltou às graças do rei após pessoalmente ter impedido aquele bárbaro de continuar com seus saques, prometendo-lhe a mão de Ilidryn?! – esperou por uma resposta que não veio, então continuou – E que o Rei ficou feliz em ver uma resolução para um problema que perdurava por anos?!

- Eu precisava de dinheiro, precisava de renome. Aquela garota foi um meio de conseguir isso! – gritou, mas então baixou sua voz a um tom cansado e conciliador, tentando entrar em um acordo, mas assumindo a culpa. - Se o problema é uma esposa, não se preocupe, sei que um homem precisa de mulher. Posso lhe arranjar quantas você quiser... Ela era só uma garota qualquer! – disse com a voz arrastada.

- Eu a amava... Não sou lascivo que nem você.


Ó, Mãe Escuridão, perdoa-me.


- E por causa desse “amor” você tentou matar seu rei, conseguiu matar o príncipe, deixando nosso reino em caos e seqüestrou meu filho? – dessa vez o desprezo era claro na voz de Ruslan.

Em situações normais o nobre não teria coragem para falar no tom de voz que usara, mas o misterioso poder que as rochas esverdeadas tinham sobre ele o levava a coisas que normalmente não faria. O único ato real de bravura foi ter ido atrás de seu irmão, no entanto, não tinha escolha afinal, pois, do contrario, demonstraria fraqueza diante de todos, tendo deixado seu o seqüestrador do seu primogênito escapar impune, isso seria o fim de sua imagem, coisa que ele não poderia deixar acontecer.

- “Por causa desse amor”? – Disse Taháinn lentamente. Quase saboreando a forma a qual aquelas palavras saiam de sua boca.

A reação de seu irmão foi totalmente diferente da que Ruslan imaginara. O nobre pensou que o consangüíneo iria tornar a gritar, reclamar, usar alguma desculpa que fosse ou então, em fúria, atacá-lo. Ao invés de qualquer uma das coisas que possam ter passado pelo imaginário do nobre como plausíveis para qual seria a próxima ação do cavaleiro, Taháinn se limitou a rir.

Não ria como alguém que desfruta uma piada, nem como alguém que está nervoso e não sabe exatamente o que fazer. Ele simplesmente gargalhava, como alguém que mostra pontas de insanidade ou que, sentindo-se superior e esnobando, ridiculariza alguém por não ter confundido as coisas. No caso de Taháinn, era uma mistura dos dois motivos. Ele tentou parar o riso, juntando fôlego para falar algo para o irmão. Conseguiu com uma leve dificuldade de quem faz algo a contragosto.

- Ruslan, você me entendeu mal... Não foi o amor que me fez fazer tudo isso. – Havia um riso em seus lábios.

- Não foi por vingança? – Sua raiva refreou por um instante, dando lugar à confusão.

- Não...

- Então... O que?

Um brilho pareceu se fazer nos olhos daquele cavaleiro caído. Seu sorriso aumentou, como que reconhecendo que finalmente seu irmão chegara ao ponto importante.

– Ela abriu meus olhos, eu precisava passar por aquele sofrimento para entender. Para que ela pudesse me mostrar, me guiar, me ensinar... – Seu rosto era o de um fanático falando sobre sua causa – Eu sinto ódio pelo que fizeram. É o ódio que me motiva. Não o amor. Ela me ensinou isso. Minha querida me mostrou o que fazer, do mesmo modo como mostrou que seu filho seria um belo presente.

Ó, Mãe Escuridão, aceita-me.

- Ela? Que ela?! – perguntou Ruslan exasperado.

- Mirkhoên... Minha mãe, minha essência, minha amante.

- A escuridão... Você louva a escuridão?! Já não bastava ser mais um desses loucos que insistem em colocar um Dynlaeth acima dos outros, acima do funcionamento das coisas... Tinha que ser o âmago do que há de pior em Cmyvllaeth?! – Ruslan cuspiu no chão

- A escuridão é uma das coisas que ela representa... Mas não adianta falar-lhe, você não entenderia o qual grande é Mirkhoên. – baixou a voz, como que em pesar – poucos entendem...

- Você está louco!

- Mas claro – sorriu – para perceber aquilo que os outros não vêem, um não pode ser são. – Era como se, arrogantemente, explicasse para a criança malcriada do vizinho o porquê de algo óbvio. – Uma pena.

Ruslan não respondeu ao seu irmão, pois ponderava na sabedoria que existia por trás do que havia dito. Um silêncio perturbador se formou no lugar onde eles apenas se encaravam, cada um perdido em sua própria mente, presos em pensamentos particulares ao mesmo tempo em que tentavam avaliar um ao outro. E Então, com a força inerente ao modo com eles se olhavam, ambos acabaram por comunicar-se em um nível mais básico, instintivo e, principalmente, mais intenso do que a simplória linguagem vocal – algo conseguido apenas por amantes, irmãos, companheiros de guerra e rivais –, nesse mesmo instante de comunicação não-falada, souberam: O próximo movimento seria um ataque.


Ó, Mãe Escuridão, espera-me.

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