segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Taháinn - O Sacrificio (parte 1)

O pesado escarpe do cavaleiro levantou a poeira vermelha e antiga - que se acumulara durante eras naquele chão irregular - assim que o primeiro passo foi dado para dentro da caverna. Sua armadura completa tiniu e rangeu conforme as placas que a compunham roçavam-se e estalavam, efeito que acabava por resultar em um som alto e perturbador devido ao eco produzido pelo lugar. O espadachim prendeu a respiração, temendo, em seu intimo, que houvesse alertado alguma criatura habitante das vastidões daqueles túneis a qual pudesse representar alguma ameaça para sua profana empreitada. Riu de si mesmo, devido ao temor impensado que havia o acometido. Sabia que agora nada poderia representar-lhe perigo e, além do mais, acabou por constatar que as velhas lendas eram verdadeiras: nenhum ser vivo tinha como morada as amaldiçoadas cavernas de Hellad-Kuzartel. Não havia ali criatura fantástica e tampouco corriqueiros morcegos - tão comuns a esse tipo de ambiente -. Contudo, mesmo que do contrario fosse, mesmo que a morte ali habitasse, não haveria problema... A escuridão estava ao seu lado.

O cavaleiro caído avançou túnel à dentro. Já não possuía o garbo e a altivez de outrora, era uma sombra do guerreiro primoroso e figura inspiradora que fora. Seu manto antes limpo e sedoso, que lhe concedia uma aura heróica quando esvoaçava durante as batalhas e cavalgadas, agora estava esfiapado e rasgado, com tiras laceradas - nunca retas, mas fazendo caminhos tortuosos - que iam até o meio de suas costas, o tecido feito da mais pura e fina lã conhecida – retirada da pelagem dos snorks de um dos países além mar – fora desperdiçado. O característico emblema Do Riskar – uma espécie de grande lagarto, feroz e temido, que habitava as florestas sulistas –, possuído apenas pela alta cavalaria de Riddárie, a muito havia se perdido, descosturado, restando apenas uma sombra sem valor no lugar em que antes ele habitara, uma clara amostra de que aquele guerreiro não detinha mais a virtuosidade que seu posto lhe atribui e nem respondia mais aos deveres que jurara honrar.

Ó, Mãe Escuridão, guia-me.

A caverna continuava montanha adentro com passagens largas, sem bifurcações, de modo que o recém chegado não teve problemas em se direcionar. A luz solar inexistia naquela altura do percurso, entretanto as pedras que compunham as cavernosas paredes emitiam um brilho de um verde pálido e lúgubre, que conferia um aspecto fantasmagórico para todo o lugar. Essa luz, porém, era suficiente para oferecer a iluminação necessária para se guiar pelo lugar. O homem não fazia idéia do que provia tal luminosidade, desconhecia se era um efeito natural, uma estranha propriedade possuída pelas pedras daquelas câmaras, ou se algum feitiço há muito realizado havia conferido tal particularidade para aquelas curiosas rochas. Apostaria na segunda opção, já que a maioria das velhas histórias, que ouvira em sua meninice, falavam sobre um mago obscuro que habitava as Hellad-Kuzartel, algumas iam ainda mais longe, atribuindo ao nome do mago o da caverna, cujo motivo da nomeação se perdeu com o tempo. 

O avanço do explorador era, embora decidido, inconstante e moroso. E mesmo que as proeminentes estalagmites, que ali existiam em grande quantidade, – por vezes formando majestosas colunas de material verde fosforescente, quando se juntavam com suas primas, as estalactites – não fossem tão freqüente, a empreitada do ex-cavaleiro continuaria dura e vagarosa, pois - mesmo com sua vasta habilidade e experiência na guerra, na batalha e sua extensa maestria com a espada - havia sido ferido. Na sua ultima luta, aquela onde selara o seu destino, havia combatido um grande numero de guerreiros durante uma fuga desesperada, passara intocado por toda a guarda real, sem nem ao menos exaurir-se, porém quando travava o ultimo confronto daquela série de embates havia sido ferido na coxa direita. 

Ninguém menos que seu antigo pajem, o filho do rei, havia realizado o feito, porquanto de tanto vê-lo lutar sabia o exato momento em que baixava a guarda e podia ser atingido. O jovem fora morto depois de desferir o golpe, sofrendo um corte em diagonal no rosto antes de ter seu peito atravessado por uma derradeira estocada. O Riddarie havia perdido seu sucessor, mas certamente ganharia uma lenda.

Mesmo com todas as excitações do ultimo grande confronto, a armadura de placas do ex-cavaleiro mantinha-se praticamente intacta tendo apenas aquele rasgo no coxote, por onde a lâmina de Kësvird - a espada do herdeiro do trono - havia adentrado – maculando sua poderosa compleição. A proteção do lutador, feita com um dos mais caros lotes de Murtjörn – o mais resistente e maleável metal conhecido –, portanto faiscante em um brilho argênteo, agora espelhava verde doentio do lugar, como que emanando a aura baixia que o desgraçado cavaleiro agora possuía. Tal tonalidade sepulcral só não se apresentava em uma região da perna que fora agredida, pois o sangue, o qual fluíra da brecha da armadura – passando da roupa acolchoada que havia entre ela e corpo do espadachim, esta empapada pelo liquido rubro em sua coxa direita - adquirira uma tonalidade negro-arroxeada com a iluminação da caverna e por vezes ainda pingava no chão, devido aos movimentos de caminhada e ao metal distorcido que adentrara na carne durante o golpe do Fäinnur – titulo atribuído ao filho do rei.

Ó, Mãe Escuridão, completa-me.

Tamanho era o descaso do cavaleiro com seus antigos valores, que A Ridath, bainha da alta cavalaria, - objeto tão importante quanto sua própria espada, Köulard, pois representava o povo que jurara proteger -, havia se perdido em algum momento que ele não recordava e, na verdade, nem mesmo se importava com o acontecido. Sua espada agora servia como uma mera bengala, auxiliando o coxear o qual o Fäinnur o presenteara, um ato imprescindível caso pretendesse continuar em sua empreitada. O uso da arma para tal fim era uma lástima, uma total falta de zelo pela obra-prima lhe que fora conferida pelo rei em pessoa, no entanto o guerreiro amaldiçoado já não ligava para tais detalhes.

Por causa disso agora a espada bastarda – uma peça ancestral finamente trabalhada, com empunhadura de couro e fios de prata imbuídos de magia – os quais que nunca deixariam Köulard escapar das mãos de seu dono -, trazendo o emblema do reino no pomo de seu cabo e inscrições milenares, em alto relevo, por sobre o seu vinco e guarda mão - que sempre servira de símbolo de para toda a Riddarie estava manchada com o sangue de seu próprio povo e tal mácula tardaria a deixar aquela bela lâmina, pois como o antigo ditado dizia: “sangue derramado por traição jamais abandona a arma do algoz”. Aquelas manchas vermelhas existiriam para sempre em Köulard, a espada lendária que, no momento, ajudava seu dono a se rastejar por um lugar profano.

Cada passo do traidor era um desafio, seu rosto se contorcia em uma máscara de raiva e de penosa resolução a cada passo incerto e torto que era dado, mantendo uma tez vermelha devido ao esforço. Suava cântaros por debaixo da abafada armadura completa, fazendo com que a roupa acolchoada – medida utilizada para evitar atrito entre a carne e o metal – desconfortavelmente colasse em sua pele. O cabelo um pouco longo para um guerreiro, outrora constantemente alinhado e penteado para trás, agora caía em seu rosto, por vezes tapando sua visão, até que, devido ao suor que escorria da testa, acabou por grudar em suas bochechas. Resfolegava a cada instante, intentando juntar energias para continuar sua jornada.

Ó, Mãe Escuridão, apóia-me.

Tamanha demora para o término daquela andança irritava e deixava o traidor ansioso por uma resolução. Já não tinha paciência, queria chegar ao objetivo e, com isso, mudar a sua sorte, cumprir o seu destino. Com raiva, o cavaleiro apertou os dentes, travando o maxilar, e fez uma careta de dor, – sentiu alguns deles trincarem, mas não se importou – tentava resistir à dor lacerante que acometia sua perna e, com isso, conseguir aumentar a velocidade de sua marcha mesmo que por alguns instantes, diminuindo assim a distancia para o inicio de sua vingança.

Em seu ímpeto descuidado, na tentativa de cobrir a distância o mais rápido possível, acabou descompassando o ritmo de seu coxear e o movimento que fazia para apoiar-se em sua espada, o que fez com que a ponta de Köulard não encontrasse um lugar apropriado para ser fincado e batesse contra uma parte especificamente dura do chão pedregoso. A arma acabou por escorregar – perfazendo um traço fino na rocha, o qual representava a trajetória de seu desvio -. Tal imprevisto foi suficiente para que o debilitado aventureiro não conseguisse manter sua estabilidade e, impulsionado para frente pela inércia, devido à espada que havia deslizado para trás – para sua sorte passando entre suas pernas, sem atingi-lo -, acabou tropeçando, com a perna ferida, em um amontoado de pedras fluorescentes. Tentando não chocar-se dolorosamente contra o chão precisou firmar-se no chão, dobrando o joelho, colocando a maior parte de seu peso na coxa ferida e com isso retesando o músculo que havia sido seriamente lesionado.

O berro produzido pelo cavaleiro se propagou por toda a extensão da caverna, era um grito de pura dor, advindo do fundo de seu pulmão e aumentado pelo ódio que passara a sentir pelo seu reino. Pressionou a região da ferida por cima da armadura, numa tentativa inútil de diminuir a dor. Sentiu sua mão molhar-se com o sangue que voltara a se esvair, embora, em pouca quantidade. Tateou sua espada e a usou como apóio para levantar-se, gemendo de dor por novamente esforçar a perna lesionada. O cavaleiro praguejou por causa do incidente, invocando o nome de deuses malignos. Ele não precisava ter passado por aquilo, poderia facilmente ter se apoiado na parede com o braço esquerdo para não cair, porém, não o fez, pois que este estava ocupado, segurando um bebê. Insatisfeito, continuou seu caminho.

Ele não se preocupava com o infante, seu gesto não tinha como objetivo de sacrificar-se se colocando em uma situação dolorosa e manter a criança segura, não, acontecera por puro reflexo, devido ao fato de estar segurando algo e, por isso, não usar o braço ocupado. Caso tivesse um tempo mínimo, o suficiente para avaliar suas opções, não teria se infligido tamanha dor, simplesmente teria largado o moleque em direção ao solo e se encostado na parede.

O cavaleiro olhou com desprezo para aquela coisinha rosada e mole que estava aninhada em seu membro. O infante dormia em sono profundo, alheia a tudo o que acontecia. Não porque achava que a situação lhe era confortável ou a armadura de metal do guerreiro reconfortante. Havia sido forçado a tomar uma forte droga que induzia ao sono, do contrario, seu seqüestrador não agüentaria seu choro desesperado e poderia acabar matando-o. O traidor sabia que poderia desmembrá-lo apenas com as mãos, sem nem usar sua espada para tal. Sentia vontade de fazê-lo. Olhava com ódio para a pequena criatura que era o filho de seu próprio irmão. Queria matá-lo. Iria matá-lo... Ambos... Pai e filho. Mas aquela... Aquela não era a hora.

Ó, Mãe Escuridão, ensina-me.

Trincando seus dentes devido à raiva acabou por voltar sua atenção novamente para o caminho que seguia. A paisagem que vinha não apresentava nenhuma mudança significativa. Poderia estar andando em círculos, caso a geografia daqueles túneis permitissem tal feito, já que tudo à sua frente parecia exatamente igual. O cavaleiro não sabia quanto tempo havia passado desde que entrara. A monotonia do lugar - onde nada acontecia e o único barulho era o eco de seus próprios passos e da espada chocando-se contra o chão – havia tirado qualquer percepção de passagem de tempo. Mesmo que o inverso fosse verdadeiro e ainda pudesse ver o sol provavelmente nada mudaria, pois, sua obstinação pelo seu objetivo o impelia para frente, fazendo-o ignorar qualquer trivialidade, como tempo ou até mesmo comida. Apenas continuava em seu lento arrastar, tendo apenas a onipresente tonalidade verde como companhia.

Quando começou a pensar em desistir daquela insana empreitada, quando passou a imaginar que seus sonhos eram mentirosos, que suas visões não passaram de meras alucinações, acabou por ver, à uma certa distancia, algo que contrastava com o ambiente da caverna e que destoava com a emanação esverdeada - que parecia impregnar cada centímetro do lugar amaldiçoado que era Hellad-Kuzartel. Apertou os olhos, tentando enxergar detalhes do que aparecera no horizonte claustrofóbico, a princípio não conseguiu, pois gotas de suor desciam-lhe pela testa e embaçavam sua visão e então, não querendo largar tirar a mão de Köulard, com medo de se desequilibrar, acabou chacoalhando a cabeça, tentando limpar o seu rosto. Funcionou. Deste modo esbanjando exaltação e alivio, o cavaleiro viu uma porta.

Não pôde dizer muito sobre o achado, devido a distancia e à precária luz. Notou apenas que a porta parecia ser de madeira simples e que o caminho ia se afunilando aos poucos, naquela ultima centena de metros, para então o portal ocupar exatamente toda a largura da passagem. Certamente não era um efeito natural, no entanto, “quem o fizera” e “porque” eram perguntas das quais arriscaria uma resposta, que podia apenas imaginar. Sabia apenas de que seu objetivo se encontrava depois daquele acesso. Sua busca estava chegando ao inexorável fim, breve estaria diante do antigo - talvez único - altar de Mirkhoên, a essência da escuridão.

Todo sofrimento e desgaste o qual havia passado simplesmente desapareceu. Existia fim, afinal, e ele estava próximo, ao alcance dos olhos. O cavaleiro avançou impetuosamente, impelido para frente como se sua vida dependesse do gesto, não já ligava para a dor, já não ligava para a mágoa ou mesmo lembrava-se do ódio. O achado havia dominado completamente sua alma amarga e sombria. Seus olhos estavam esbugalhados, sem ousar piscar, temendo que a porta desaparecesse como num passe de mágica. Os braços trabalhavam freneticamente, um agüentando o balançar, impedindo que o bebê caísse, e outro “cavando” com a espada, o apoio necessário para aquela ultima carreira em direção ao destino.

Iria alcançá-la.

Cumpriria o seu karma.

Mas não naquele momento. Pois, em meio à sua carreira inabalada do explorador, uma voz conhecida propagou-se pelo lugar, ajudada pelo eco, conseguindo furar o bloqueio que a porta causava na mente do cavaleiro e tirando-o de seu quase-transe.

- Taháinn! – gritava a voz, carregada de ódio, clamando pelo traidor.

Ó, Mãe Escuridão, controla-me.

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