sexta-feira, 16 de julho de 2010

Contos de Laeria -- Vocação de Kaal (Parte 1 de 2)

Ano 3011 – Quinta era dos humanos


    No meio da sala, Kraal Maase sentiu novamente a pontada de dor na sua cabeça retornar com maior intensidade. Sua reação foi visível e preocupante o bastante para que um dos seus alunos perguntasse se estava tudo bem. Kraal balançou a cabeça com um olhar severo, sinalizando que deviam desconsiderar o que tinham visto. O poder que exercia naquele local era tão intenso que no momento seguinte não se detectava em nenhuma fisionomia qualquer semblante que demonstrasse que algo fora do comum acontecera. “Eles sabem”, pensou Kraal, “Mas por quê me importo?”.



    Colocou a mão na testa, ajeitou sua roupa de trabalho que consistia em uma camisa de linho encardida, uma calça de couro cru grande demais para ele e um cinto com suporte para uma empunhadura de uma espada curta, fato curioso pois nunca em sua vida sequer pegara em uma arma. Hesitou por um momento em que a sensação desagradável ameaçava voltar antes de prosseguir:


    –Então, como acabamos de constatar, a influência da cultura do templo de Zhae é muito mais forte ao norte, o que é a causa explícita para o conflito político envolvendo o templo e o reino de Ran, que o contém. Recentemente, Ran não tem ficado nada satisfeito com a interferência do templo no governo, resultando com isso...


    Falava morosamente, discutindo sobre um mundo que estava acontecendo neste exato instante mas sobre o qual não se interessava. O entusiasmo de seus alunos o constrangia, fazia com que gaguejasse frequentemente, com que odiasse estar ali. Verdade seja dita, odiava profundamente seu trabalho toda vez que era obrigado a discutir política. O presente era insosso. Já o passado – ah, o passado – por outro lado, com toda a sua elegância, contos de deuses e magias, o fascinava, o possuía. Assim, não soube como reagir quando, naquele mesmo dia, o passado infiltrou-se em sua aula.


    Tinha finalmente chegado ao ápice do seu prazer diário: As eras que deveriam ser lembradas apenas pelos livros, pelas caixas de música, pela própria arte. Tratava do conflito pela magia, uma série de guerras que se espalharam pelo mundo há mais de dois mil anos atrás, disputas pelo conhecimento recém-descoberto de um instrumento antes considerado divino. Alguns mais jovens pareciam pasmos em saber que houve um tempo onde a magia, companheira constante em cada tarefa de suas vidas, era desconhecida. Kraal adorava esse espanto. Observou cada um dos rostos dos que sentavam no chão. A sala estava cheia. Tivesse parado seu olhar pouco antes de vasculhar todo o recinto não teria cruzado o olhar com o estranho senhor que se cobria com um grande lençol, no fundo da sala, deixando apenas a face à mostra. Por um momento, nada lhe ocorreu além da sensação de estranheza, de algo que está fora do lugar. Tentou continuar a aula quando viu que, na lateral do cobertor do estranho, três listras de cada lado cintilaram.


    Seu coração acelerou. Suas pernas vacilaram. A saliva em sua boca parecia prestes a afogá-lo enquanto ele fazia um esforço tremendo para recuperar o ar. Cambaleou. A dor na cabeça. A dor no peito. Anteviu o momento em que quase desfalecia e conseguiu, por pouco, retomar o controle. Mas era apenas temporário. Continuou, nervosamente:


    – E... Então... Então... Há registros... Sim, registros... Há registros que, muito tempo atrás, pouco antes do início da... da nossa era, e estamos falando de mais de 3000 anos atrás, existiu um herói, não se sabe bem quem, e que e-e-ele fe-fe-fez – Engoliu a saliva nervosamente e tentou fazer contas para se distrair. Continuou – Ele fez alguma espécie de revolução. Salvou o mundo, segundo escritos antigos, valendo lembrar que-que-que mu-mu-mu... “mundo” naquela época eram umas poucas tribos e gens. Aparentemente, esse herói era tão impor-im...impor-... respeitado que o seu desaparecimento pode ter resultado n a primeira grande guerra entre humanos. O que... - Parou. - Bem, me fugiu o que eu ia dizer. Então, evidências apontam que esse herói devia ser humano. Então... Falemos das evidências em um próximo encontro, então? Não me sinto bem.


    A classe desbandou quase toda, alguns cheios de preocupação, outros frustrados pela aula incompleta. O professor não era do tipo de se fazer de coitado. Podia estar queimando de febre que não admitiria a ninguém. Era sua resolução. Mas dessa vez, a primeira, foi necessário.


    O estranho o encarou firmemente quando todos partiram.Kraal desviou o olhar, tamanho era o temor que sentia ao confrontar-se sozinho com o estranho. Estava ciente da identidade do seu observador mas a reciproca não parecia verdadeira. O estranho parecia procurar algo que confirmasse quem era aquele professor amedrontado e encontrou a resposta que desejava na pequena assinatura que se destacava no topo do quadro: Maase-m. Esboçou algo parecido com um sorriso com a sua descoberta e se levantou. Instintivamente, Kraal tocou com os dedos no quadro e fez um leve movimento com o dedo para que o quadro inteiro se apagasse. O estranho pareceu abismado com algo naquela cena, mas continuou seguindo em frente. Um passo, dois passos, três passos. A sala gigantesca parecia menor, mais sufocante a cada passo. Quatro passos,cinco passos, seis passos. Kraal cerrou os punhos e forçou seus joelhos a pararem de tremer. Tentou falar algo, mas o estranho estava a sua frente e a voz não saiu. Foi ele que iniciou o diálogo:


    – Milaa-antê Saabil Giaema. - Saiu sua voz em um tom formal e um pouco arrastada.


    – Não falamos mais Pei-k por aqui. – Respondeu, relaxando.


    O estranho respondeu apenas com um sorriso singelo.


     – Fomos dominados pelo império de Rust, que entrou em decadência pouco depois, cedendo nossa cidade ao império de Dzitri, que não é a favor de múltiplas línguas. Caüteraisui, Vitemesui1. Falamos a língua de Catí, como boa parte do mundo. Só que a falamos oficialmente.


    – Ah.


    – Então, lhe asseguro que o que você sabe de minha língua é muito mais do que eu sei. Tudo isso aconteceu antes que eu nascesse.


     – Nomeia-te.


     – Bem.. Kraal Maase.


     – Kraal... Possui “R”.


     – ... Como? - Sem notar, quebrou seu giz meticulosamente ritualizado.


     – A Pei-k não garantia o “R”. – Deu outro de seus sorrisos indecifráveis enquanto começava a se mover para a porta. Parecia que queria que Kraal o seguisse.


     – Minha mãe... ela me teve aqui. – O professor tropeçou em seus primeiros passos mas se manteve em pé.


     – Seu avô me era conhecido.


     – Creio que não posso dizer o mesmo. Ele morreu de uma forma que eu prefiro não mencionar. Foi... antes que eu nascesse.


     – Ah.


     – Bem... esquece. Onde é que estamos indo mesmo? – Olhou ao redor e notou que estavam tomando a direção da saída da cidade.


     – Cheguei com uma montaria. – O estranho continuou andando, com um passo firme. O que vestia não era uma túnica mas exatamente um lençol branco gigantesco que dava várias voltas em seu corpo. Por baixo, parecia usar trajes elegantes, mas não se podia dizer com certeza. Tudo nele parecia mistério e cansaço.


     – Então... de onde você veio? – Neste momento, o professor percebeu que esse tempo todo vinha chamando o estranho de “você”.


     – Estava dormindo.

    Os dois ficaram em silêncio durante um bom tempo. Próximo à saída da cidade, o estranho deu água e comida para uma grande zebra que era a sua montaria.
    –A cidade está mudada. – Falou o forasteiro.

    A isso, Kraal nada respondeu. Mas era verdade que nos últimos anos a cidade de Beenit tinha mudado e nem sempre para melhor. As ruas da cidade estavam cobertas por areia, o piso estava se partindo e as casas tinham uma aparência cada vez pior. A cidade ainda era ponto de referência quando se falava em encantamentos de reprodução de materiais como caixas de música ou livros, fama que Kraal reconhecia não ser mais digna da cidade, que só possuía um punhado de pessoas que ainda exercia a profissão. Ainda assim, toda criança sabia no mínimo copiar uma página pelo método mais amador, mas tinha seus esforços voltados a política desde que um grupo de oficiais de Beenit conseguiram altos cargos no império. Por mais que este súbito interesse tenha beneficiado Kraal, permitindo-o viver uma vida aceitável no ensino, ele não deixava de sentir um grande desapontamento com todo o povo: Estavam decaindo, sedentos por poder e prestígio.


    -Sim... está. Mas olha... – O forasteiro olhou para Kraal enquanto ele juntava as palavras e a coragem para dizer – Eu sei quem você é.


    -Eu sei. – Juntou um movimento brusco de ajeitar suas roupas com outro de seus sorrisos.


    Ficaram em silêncio. A manhã estava acabando e as pessoas se movimentavam para os bares e restaurantes da cidade. Ninguém costumava cozinhar por ali e se uma pessoa porventura contasse de suas aventuras no preparo de uma refeição, seria taxado como forasteiro, cozinheiro ou problemático. Ironicamente, boa parte dos cozinheiros da cidade tinham esses três atributos.


     – Seu avô era um grande artista.


    O sol chegou ao zênite. As pessoas se movimentavam sem parar, entrando nos alojamentos para se alimentar. Kraal não sentia fome alguma. Sua cabeça só doía, suas pernas só tremiam, ele simplesmente sabia o que ia acontecer.


     – Seu único ofício – prosseguiu o forasteiro – é ensinar?


    Sim. Essa poderia ter sido a resposta de Kraal. Tudo terminaria ali, ele viveria sua vida como uma pessoa comum, teria uma vida comum discursando sobre política e história, mas teria uma vida, ao menos. Apenas um sim.


    Mas conhecia a pessoa a sua frente. Ouviu histórias dele por toda a sua infância e toda a juventude. Agora com 27 anos ainda continuava ouvindo através de sua mãe, quando essa tinha forças para falar. Sabia que, como sua mãe, tinha nascido para aquele momento, e até a presente data tinha lutado contra sua predestinação. Contudo, diante daquele ser, ele não conseguiria recuar e viver sem dizer que tentou o que devia ser tentado.


     – E-e-eu... Eu sinceramente... Eu nunca... Esse tipo de coisa. Nunca matei, roubei ou espionei. Mas... então... – esboçou um gesto de bravura que saiu mais estúpido que pretendia – Kaal ficaria melhor... Os espiões de Maase não tem “R” em seus nomes.


    Os olhos do homem mudaram de coloração do vermelho para o roxo. Suas pupilas dilataram até serem duas bolas pretas cobrindo sua íris. Por baixo do lençol, Kaal podia ver as duas pequenas listras, membranas lilases logo abaixo da orelha, rutilando. O estranho sorriu, um sorriso absurdo que podia ser tanto de descrença quanto de incentivo. Kaal apenas pôs a mão na testa e escolheu acreditar na segunda opção.

1“Um império, uma cultura”. Mote supostamente bradado por Graüma Sacce, terceiro imperador de Qasu, encerrando a discussão sobre a concessão de direitos especiais às províncias que se recusavam a seguir os ritos do império, dando início à guerra de unificação de Qasu em 1922.

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